Artigo Original

PROPOSTA DE AVALIAÇÃO DOCUMENTAL EM MEDICINA PERICIAL

Como citar: Freire JJB. Proposta de Avaliação Documental em Medicina Pericial. Persp Med Legal Perícia Med. 2019; 4(2)

https://dx.doi.org/10.47005/040204

Recebido em 20/04/2018
Aceito em 05/05/2019

Os autores informam não haver conflito de interesse.

DOCUMENTARY EVALUATION PROPOSAL IN FORENSIC MEDICINE

                    José Jozefran Berto Freire (1)

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5765442081508009 – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1817-9427

(1) Associação Brasileira de Medicina Legal e Perícias Médicas, São Paulo-SP, Brasil. (Autor principal)

E-mail:  jjbertofreire@gmail.com

RESUMO

A proposta deste artigo é apresentar uma nova categorização metodológica na apreciação científica dos documentos médicos periciais. A evolução do trabalho resultou na criação de categorias do pensar médico pericial que contemplam o rigor científico e, portanto, demonstrativo e necessário para o exercício efetivo e adequado desta atividade profissional que é a Medicina Pericial.

Palavras-chave: perícia médica, perícia, medicina pericial

ABSTRACT

The proposal of this work is to present a new methodological categorization in the scientific assessment of medical expert documents. The evolution of the work resulted in the creation of categories of medical expert thinking that contemplate the scientific rigor and, therefore, demonstrative and necessary for the effective and adequate exercise of this professional activity that is the Expert Medicine.

Keywords: medical expertise, expertise, expert medicine

 1. INTRODUÇÃO

Ancorados na necessidade demonstrativa (conceito que remonta à Lógica, de Aristóteles, mas que está na base do “fazer-se ciência”, de Galileu até os nossos dias), elaborou-se uma pesquisa em documentos médico-periciais na área criminal, com o objetivo de fundamentar o quão imprescindível se tornou para o organismo social uma consecução científica rigorosa dos referidos documentos. Mostra-se, também, necessária uma validação de perspectivas que permitam a construção desses documentos e os confirmem em sua magnitude.

Apresentar-se-á aqui um método crítico de avaliação de documentos médico-periciais que pode contribuir decisivamente para melhor interpretação e uso adequado dos referidos documentos.

Documento sensu lato, sabemos, é a representação grafada em determinado sistema de signos (por exemplo: um alfabeto), cujo desiderato é a apresentação de uma ideia, um fato, um fenômeno. Na ambiência da Medicina Legal, o documento é visto e pensado como texto escrito que transcreve a prova e demonstra assim o trabalho pericial, apresentando-o em linguagem apropriada, com o fim precípuo de orientar processo legal que se fundamente na prova científica.

Para França (1), dentro do trabalho pericial, papel essencial é advindo dos documentos médico-legais, pois, em suas várias nuances, além de apresentar a conclusão da perícia, ele pode validar ou invalidar o agir pericial e, no último caso, torna imprestável a prova. Veja-se como o autor traduz seu entendimento sobre o tema:

Documento é toda anotação escrita que tem a finalidade de reproduzir e representar uma manifestação do pensamento. No campo médico-legal da prova, são expressões gráficas, públicas ou privadas, que têm o caráter representativo de um fato a ser avaliado em juízo. Os documentos, de interesse da Justiça, são: as notificações, os atestados, os relatórios e os pareceres (grifo do autor); além desses, os esclarecimentos não escritos no âmbito dos tribunais, constituídos pelos depoimentos orais. (p. 29).

A pesquisa foi realizada tendo por base os denominados relatórios médico-legais, ou seja, os laudos e os autos, sendo que no primeiro tipo, o documento é da lavra do próprio perito e, no segundo, o perito dita para o escrivão de polícia as observações dos eventos, diante de testemunha.

O relatório médico-legal é elaborado obedecendo ao seguinte modelo oficial:

Preâmbulo: desta parte do documento constam: data do exame pericial, local, repartição pública de origem, nome da autoridade pública que o solicitou, titulação e endereços dos peritos e a qualificação do periciando.

Quesitos: quando se trata das ações penais, território onde mais frequentemente atua o perito médico-legal, existem os chamados quesitos oficiais que, no entanto, não limitam a elaboração de outros questionamentos por parte da autoridade, os chamados quesitos acessórios. Na Perícia Médica Cível e na Psiquiatria Forense, como regra geral, não existem os referidos quesitos periciais oficiais.

Histórico: é a parte do relatório médico pericial que mais se aproxima do denominado “método clínico” do trabalho do médico, pois se fundamenta nos preceitos da Semiologia Médica, que obedece, desde os tempos hipocráticos, à necessidade de se ter conhecimento da origem de sintomas e sinais que anunciam a doença. Na ambiência da Medicina Legal, o histórico revela os registros de fatos e eventos que têm início no periciando. No entanto, cabe à perspicácia do perito separar nessa hora o que tem relevância e o que não tem. O perito pode inclusive ouvir testemunhos, observar outros elementos que o auxiliem na consecução do laudo pericial. O histórico supre, na prática médico-pericial, muitas vezes, o não estar presente no “local do crime ou do evento suspeito”, ajustando, assim, o pensar do perito à prática científica da construção do documento específico, ou seja, o laudo pericial.

Descrição: para a maioria dos autores de Medicina Legal, este é o momento crucial da elaboração do laudo pericial. Fica-se diante do repto pericial mais evidente, portanto, do visum et repertum, o ver e reportar ou relatar que, nascido no século XVI, permeia até os dias atuais o trabalho pericial na construção do laudo. O magistrado, promotor, advogado que restringir o contato com o laudo à conclusão e resposta aos quesitos, nada entenderá, não fundamentará, não fará uma boa prática, sob a ótica da operação do Direito. Não pode o perito simplesmente citar uma lesão, evento, pois essa posição tem um viés reducionista incompatível com a prática científica.

Deve o médico perito abordar o evento médico-legal de forma análoga à que Kant (2) se refere à abordagem do fenômeno que se intenciona conhecer, ou seja, aquela que busca a unidade mais elementar da consciência: o conceito. É necessário, então, que haja minúcia, cuidado, especialmente no estabelecimento de inferências verdadeiras (necessariamente demonstráveis), que devem se iniciar com o ver, rever, avaliar e, por fim, relatar com toda riqueza os detalhes possíveis.

Para França (3),

A verdadeira finalidade do laudo médico-legal é oferecer à autoridade julgadora elementos de convicção para aquilo que ela supõe, mas de que necessita se convencer. A essência da perícia é dar a imagem mais aproximada possível do dano e do seu mecanismo de ação, do qual a lesão foi resultante. (p. 37).

Nesta parte da elaboração do laudo pericial ficam mais evidentes as presenças da excelência (arethé) e da técnica científica (techné) aristotélicas, quando o referido documento é bem elaborado.

Discussão: embora muito importante, por permitir o exercício da dúvida, da possibilidade de se contemplar a hipótese rival (proposta pelo autor no livro “Medicina Legal Fundamentos Filosóficos”), da verificação das relações entre o(s) evento(s), esse item nem sempre é contemplado nos documentos médico-legais. Vale ressaltar a discussão dos diversos elementos contidos no laudo pericial, que deve afastar meras conjecturas pessoais e se centrar na consulta aos referenciais teóricos e na ligação entre os diversos conceitos com os fenômenos ali analisados. Vê-se, por essas possibilidades, a importância do item Discussão no bojo do documento denominado laudo médico-legal.

Conclusão: nesta etapa, utilizam os elementos analisados na descrição e na discussão para a promoção de síntese que permita o desiderato do agir pericial. O cuidado que deve ser observado ao se ler um laudo pericial é o fugir-se à prática comum de se dedicar atenção extrema à conclusão e com isso deixar-se escapar toda a visão de detalhes que permitem, estes sim, a compreensão do evento ou eventos periciados.

Respostas aos quesitos: o término de um laudo em nosso meio é feito por meio de respostas sucintas, muitas vezes afirmações ou negações, em rol de quesitos previamente definidos pelo Estado. É claro que pode ocorrer, em algumas circunstâncias, quesitos outros, diversos dos chamados “quesitos oficiais”, porém, isso ocorre na excepcionalidade, podendo nos levar a ver certo pré-determinismo latente e que decorre da própria legislação pátria. O perito não pode ficar restrito à simples condição de responder a tais quesitos, ou ainda a outros, sob pena de se aplicar ao agir pericial um reducionismo inaceitável. Daí a importância do item discussão, onde o perito fazer evoluir as explicações e as demonstrações pertinentes a cada caso ou fenômeno.

2.DESENVOLVIMENTO

Foram escolhidos cinco tipos de exames ou laudos médico-legais, devido à sua frequência: Laudo de exame de corpo de delito (conjunção carnal), Exame clínico para verificação de embriaguez, Laudo de exame de corpo de delito (exame necroscópico), Laudo de exame de corpo de delito (lesão corporal) e Laudo de exame de corpo de delito (estupro).

Os quesitos oficiais a serem respondidos pelos peritos no Laudo de exame de corpo de delito (conjunção carnal) são: 1) Houve conjunção carnal? 2) Qual a data provável dessa conjunção? 3) Houve violência para essa prática? 4) Qual o meio empregado para a violência? 5) Da violência resultou para a vítima: incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias ou perigo de vida, ou debilidade permanente de membro, sentido ou função, ou aceleração de parto, ou incapacidade permanente para o trabalho, ou enfermidade incurável, ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função, ou deformidade permanente, ou aborto? 6) É a vítima alienada ou débil mental? 7) Houve qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir?

Os quesitos a serem respondidos pelos peritos no Exame clínico para verificação de embriaguez são: 1) Há sintomas indicativos de que o paciente está embriagado? 2) Se afirmativo, que tipo de embriaguez? 3) No estado em que se encontra, coloca em perigo a segurança própria ou alheia? 4) É possível se determinar se o paciente é usuário crônico de bebida alcoólica? 5) No caso afirmativo, qual prazo deve o paciente permanecer internado para o necessário tratamento?

Os quesitos a serem respondidos pelos peritos no Laudo de exame de corpo de delito (exame necroscópico) são: 1) Houve morte? 2) Qual a causa? 3) Qual a natureza do agente, instrumento ou meio que a produziu? 4) Foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel?

Os quesitos a serem respondidos pelos peritos no Laudo de exame de corpo de delito (lesão corporal) são: 1) Há ofensa à integridade corporal ou à saúde do examinado? 2) Qual a natureza do agente, instrumento ou meio que a produziu? 3) Foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel? 4) Resultará incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias; ou perigo de vida; ou debilidade de membro, sentido ou função; ou antecipação de parto? 5) Resultará incapacidade permanente para o trabalho; ou enfermidade incurável; ou perda de membro, sentido ou função; ou deformidade permanente ou aborto?

Os quesitos a serem respondidos pelos peritos no Laudo de exame de corpo de delito (estupro) são: 1) Houve a prática de ato libidinoso? 2) Em que consistiu? 3) Houve violência? 4) Qual o meio empregado? 5) Da violência resultou para a vítima: incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias ou perigo de vida, ou debilidade permanente de membro, sentido ou função, ou aceleração de parto, ou incapacidade permanente para o trabalho, ou enfermidade incurável, ou perda de membro, sentido ou função, ou deformidade permanente, ou aborto? 6) É a vítima alienada ou débil mental? 7) Houve qualquer outra coisa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir?

3. METODOLOGIA

A presente pesquisa teve como objetivo analisar 996 documentos médico-legais (Laudos), de domínio público, de Institutos Médico-Legais do Brasil. Os dados da pesquisa fazem parte da defesa de tese de doutorado do autor apresentada na Universidade de São Paulo (IP-USP) em abril de 2009, denominada Da doutrina e do método em Medicina Legal ensaio epistemológico sobre uma ciência biopsicossocial.

O processo analítico utilizado teve como referência teórica as óticas aristotélica e kantiana, em que um determinado juízo de natureza atributiva revela o predicado contido no sujeito. Para Lalande (4), “Método analítico” foi utilizado por Hamelin para designar o conjunto de procedimentos lógicos que “é ou parece ser em quase toda a parte seguido pelo pensamento comum”, juízo indução, silogismo. “Ele o opõe ao ‘método sintético’ que progride através de tese, antítese, síntese” (p. 62).

Os dados contidos no material estudado ficam em nosso entendimento adequados à referida amostra, para um uso ulterior, como referencial crítico, pois esses dados necessitam de novas avaliações.

Após processo analítico acurado sobre todos os elementos que compõem os documentos médico-legais pesquisados, pode-se chegar às “categorias a seguir citadas”, tanto na ótica aristotélica, onde se podem encontrar as diferentes “classes do ser”, quanto aos diferentes predicados que se podem afirmar de um sujeito. Considere-se ainda a ótica kantiana, onde as referidas categorias são os conceitos fundamentais do Entendimento puro (Razão), portanto, formas a priori do nosso conhecimento, que representam todas as funções substanciais do discurso deduzidas da natureza do juízo considerado nas suas quatro categorias: quantidade, qualidade, relação e modalidade.

As categorias, propostas nesta pesquisa, estão denotadas (aqui, termo que designa a extensão de um conceito, leia-se “extensão no sentido cartesiano”), em quatro tipos específicos: Inadequação e Imprecisão do vocabulário técnico, Inadequação dos conceitos em Medicina Legal, Nexo causal prejudicado e Laudo insuficiente.

A categoria denotada pelos termos “inadequação e imprecisão” das palavras de uso corrente na ambiência da Medicina Legal, remete-nos ao que é entendido pelos termos “adequação e precisão”. O primeiro termo representa a conformidade entre um conhecimento e o objeto correspondente, no mundo concreto. O segundo termo representa, por sua vez, a escolha exata das palavras e construções que expressem com fidelidade um evento, pensamento, fenômeno. A inadequação e a imprecisão serão os opostos dos termos anteriormente citados, ou seja, a ausência de adequação caracteriza o primeiro termo e caráter daquilo que é impreciso caracteriza o segundo. O problema surge da inadequação e da imprecisão do vocabulário técnico que o perito usa na construção do documento médico-legal, que orienta processos legais.

A inadequação dos conceitos em Medicina Legal nos remete ao Entendimento kantiano do que seja conceito, ou seja, a “unidade mental do múltiplo”, que o filósofo grafou de forma tão sintética e precisa.

O conceito de “Nexo causal” remete o perito às condições necessárias e suficientes que relacionam uma causa ao seu efeito.

O quarto tipo dessas categorias, ou seja, o “Laudo insuficiente” remete, em uma determinada análise, ao que é escasso, insuficiente, pouco. Portanto, não atinge o objetivo do agir pericial que nos pede o contrário.

3.1 ANÁLISE FÁTICA

Diante de laudos médico-legais que informam, por exemplo: “hematoma no seio esquerdo, equimoses no joelho direito, região anal com ausência de fissuras ou rágades na mucosa anal, esfíncter anal com tonicidade normal” – lesões transcritas de laudo  de exame de corpo de delito (estupro) –, pode-se, além de dar outra interpretação ao exposto, ainda não perceber a inadequação e imprecisão do vocabulário técnico utilizado? Prosseguindo com as citações de documentos médico-legais, veja-se este outro exemplo: “ausência de trauma, hematoma ou ferimento na região anal; ao toque esfíncter pérvio sem qualquer sinal de corte anal”, estão evidentes em ambas as situações a inadequação e a imprecisão do vocabulário técnico que o perito deve evitar na consecução de seu trabalho.

Em outro documento, o texto continha a seguinte “construção verbal”: “a paciente supra, foi vítima de mordida de cão, o exame constatou: pequena escoriação na região da nádega direita, produzida pelo instrumento ‘mordida de cão’”. Onde se encontra o conceito de ação vulnerante corto-contundente nesse caso? Ou, ainda, em outro exemplo: “paciente apresenta várias cicatrizes de ferimentos corto-contundentes na região nasal e mentoniana, produzidas por agressão física”, onde está novamente o conceito de agente vulnerante?

Observe-se este outro texto de laudo médico-legal constante em nossa pesquisa: “paciente apresenta várias cicatrizes de ferimentos corto-contusos na região nasal direita, mentoniana direita e no joelho direito, produzido por instrumento contundente”. Onde está presente a adequação conceitual de instrumento corto-contundente, instrumento contundente, lesão corto-contusa, lesão contusa, e ainda pior: o que significa “região mentoniana direita”, em anatomia humana? Veja-se este outro texto pericial pesquisado: “paciente apresenta cicatriz cirúrgica em abdome inferior cicatrizada e ainda cicatriz em região nasal por ferimento corto-contuso, cujo agente foi de natureza contundente” – novamente se está diante de evidente imprecisão conceitual, além de óbvia exiguidade de elementos informativos da real situação do examinando. Segue-se outro texto pericial: “paciente apresenta equimose em região mamária direita, laudo positivo para atos libidinosos (chupada)”, ora, equimose é lesão corporal decorrente de ação de instrumento contundente, se realmente houve ruptura capilar decorrente da referida “chupada”, a lesão é denominada sugilação; novamente se está diante de evidente inadequação conceitual e imprecisão do nexo causal.

Esses exemplos se repetem ad nauseam, na referida amostra, ou seja, nos laudos analisados, senão vejamos: “ao exame constatou-se ferimento corto-contuso em região frontal e orelha direita, produzido por instrumento contundente”; “vítima de acidente automobilístico que apresenta: ferimento corto-contuso na região occipital direita com sutura e hematoma de coxa esquerda, produzidos por instrumento contundente”; “ao exame externo apresenta escoriações no couro cabeludo na região occipital e nas costas, hematoma no braço direito. Realizada inspeção bimastoidea vertical e retirada a calota craniana pela técnica de Griesinger, notou-se: extensa fratura do osso occipital e parietal direito indo em direção ao osso parietal esquerdo e temporal direito; observa-se extravasamento de massa encefálica na região occipito-parietal direita. Exame do tórax e do abdome sem interesse. Causa mortis: hemorragia cerebral por fratura do crânio”. Essas últimas transcrições de documentos médico-legais de nossa pesquisa, mais uma vez confirmam a evidente inadequação de conceitos já estabelecidos na Medicina Legal, além da imprecisão de referências anatômicas e imprecisão do nexo causal.

O que se dizer do seguinte texto: “paciente está fazendo pré-natal, o exame revelou conjunção carnal antiga” – em uma só frase, tantas imprecisões e inadequações técnicas, e quanta insuficiência de informação, que caracteriza a categoria por nós denominada laudo insuficiente. Veja-se este outro exemplo: “paciente em posição genupeitoral: nada de interesse médico-legal”, ou ainda este: “colocado em posição genupeitoral: ânus sem interesse médico-legal”, este outro: “ao exame, constatamos: traumatismo em joelho esquerdo, apresentando também hálito etílico, concluímos que o paciente apresenta lesões leves”, veja-se este outro: “ao exame: ferida pérfuro-contusa na região torácica antero-inferior do hemitórax esquerdo com perfurações de alças intestinais e do pulmão esquerdo”, este também: “vítima de agressão física, ao exame constatamos: ferimento corto-contuso em cotovelo esquerdo, em mucosa de lábio inferior, produzidos por instrumento contundente”.

Tais exemplos contidos nos laudos analisados consolidam a necessidade da presente pesquisa, dada a exuberância da inadequação, imprecisão, insuficiência dos elementos fenomênicos ali presentes, que impedem o nexo causal e, portanto, invalidam os referidos documentos, tornando-os imprestáveis para o objetivo pericial, ou seja, constituir a prova, no caso da Medicina Legal, a prova científica.

3.2 TRATAMENTO ESTATÍSTICO DOS DADOS

Serão apresentados as análises dos documentos médico-legais pesquisados (996 laudos médico-legais) que foram tratados estatisticamente.

Antes de serem apresentadas, é necessário se explicar a construção delas. Após a devida análise, chegou-se às Categorias qualitativas já definidas anteriormente: Inadequação e imprecisão do vocabulário técnico, Inadequação dos conceitos, Nexo causal prejudicado e Laudo insuficiente. Essas categorias foram numeradas em ordem crescente de 1 a 4.

1 – Inadequação e imprecisão do vocabulário técnico.

2 – Inadequação dos conceitos.

3 – Nexo causal prejudicado.

4 – Laudo insuficiente.

Como diversos laudos apresentavam caracteres que os classificavam em mais de uma categoria, foram criadas outras categorias que contemplassem essas intersecções.

formula1

Para determinar o número de categorias que contemplassem as intersecções entre duas categorias, calculou-se o número de combinações simples de quatro categorias tomadas de duas em duas, através da seguinte fórmula:

Assim, obtiveram-se dados que remetem às categorias: 1e 2; 1 e 3; 1 e 4; 2 e 3; 2 e 4; 3 e 4.

Para determinar o número de categorias que contemplassem as intersecções entre três categorias, calculou-se o número de combinações simples de quatro categorias tomadas de três em três, através da seguinte fórmula:

formula2

Assim, obtiveram-se as categorias: 1, 2 e 3; 1, 2 e 4; 1, 3 e 4; 2, 3 e 4; completou-se, então, o conjunto de categorias pesquisadas com a intersecção das quatro categorias, ou seja, 1, 2, 3 e 4; e ainda uma última categoria onde foram considerados os “laudos suficientes”.  As categorias, o número de laudos e as devidas porcentagens dos mesmos estão relacionados a seguir em tabelas e figuras:

CategoriasLaudos%
1237,10
23611,11
372,16
411033,95
1 e 282,47
1 e 341,23
1 e 492,78
2 e 3154,63
2 e 441,23
3 e 410,31
1, 2 e 351,54
1, 2 e 420,62
1, 3 e 410,31
2, 3 e 410,31
1, 2, 3 e 4103,09
Suficientes8827,16
 324100,00

Tab. 1: Número de laudos pesquisados de Lesão Corporal e suas respectivas frequências relativas.

figura1

Fig. 1: Histograma correspondente aos laudos de Lesão Corporal.

CategoriasLaudos%
1157,18
22311,00
310,48
46531,10
1 e 273,35
1 e 300,00
1 e 441,91
2 e 320,96
2 e 441,91
3 e 400,00
1, 2 e 310,48
1, 2 e 400,00
1, 3 e 400,00
2, 3 e 400,00
1, 2, 3 e 473,35
Suficientes8038,28
 209100,00

Tab. 2: Número de laudos pesquisados de Conjunção Carnal e suas respectivas frequências relativas.

figura2

Fig. 2: Histograma correspondente aos laudos de Conjunção Carnal.

CategoriasLaudos%
194,59
231,53
310,51
46231,63
1 e 242,04
1 e 300,00
1 e 421,02
2 e 331,53
2 e 442,04
3 e 431,53
1, 2 e 321,02
1, 2 e 400,00
1, 3 e 473,57
2, 3 e 442,04
1, 2, 3 e 42814,29
Suficientes6432,65
 196100,00

Tab. 3: Número de laudos pesquisados de Exames Necroscópicos e suas respectivas frequências relativas.

figura3

Fig. 3: Histograma correspondente aos laudos de Exames Necroscópicos.

CategoriasLaudos%
1116,67
231,82
310,61
47042,42
1 e 221,21
1 e 331,82
1 e 442,42
2 e 321,21
2 e 421,21
3 e 410,61
1, 2 e 321,21
1, 2 e 410,61
1, 3 e 410,61
2, 3 e 410,61
1, 2, 3 e 442,42
Suficientes5734,55
 165100,00

Tab. 4 Número de laudos pesquisados de Verificação de Embriaguez e suas respectivas frequências relativas.

figura4

Fig. 4: Histograma correspondente aos laudos de Verificação de Embriaguez.

CategoriasLaudos%
165,88
298,82
300,00
42625,49
1 e 221,96
1 e 310,98
1 e 410,98
2 e 310,98
2 e 410,98
3 e 410,98
1, 2 e 300,00
1, 2 e 400,00
1, 3 e 421,96
2, 3 e 400,00
1, 2, 3 e 410,98
Suficientes5150,00
 102100,00

Tab. 5: Número de laudos pesquisados de Exame de corpo de delito (estupro) e suas respectivas frequências relativas.

figura5

Fig. 5: Histograma correspondente aos laudos de Exame de (estupro).

3.3 DO INSTRUMENTO ESTATÍSTICO

Escolhemos para trabalhar os elementos colhidos na pesquisa realizada em 996 laudos médico-legais de diversas regiões do país. Os exames, ora apresentados na sequência desta estatística, foram os seguintes: Laudo de Exame de Corpo de Delito (Lesão corporal); Laudo de Exame de corpo de delito (Conjunção carnal); Laudo de Exame de corpo de delito (Exame necroscópico); Exame clínico para verificação de embriaguez; Laudo de Exame de corpo de delito (estupro).

A estatística escolhida foi o Teste de qui-quadrado clássico, pois os dados trabalhados são categóricos, já que corresponde à contagem de frequência de uma variável classificada em categorias. Essa estatística é usada para testar a hipótese de que uma distribuição de frequências observadas se ajusta a uma determinada distribuição teórica, com variáveis qualitativas, que é o presente caso.

Para Arango (5): os testes para dados categorizados são:

Dados categorizados referem-se à contagem de frequência de uma variável classificada ou subdividida em categorias. Embora este procedimento seja típico de dados referentes a variáveis qualitativas, é possível também criar categorias para dados de variáveis quantitativas. (…) O objetivo dos testes para dados categorizados é determinar, segundo algum critério válido de decisão, se o fator discriminante exerce alguma influência sobre o fator discriminado. (p. 226-227).

A distribuição qui-quadrado  tem as seguintes propriedades:

  • A distribuição qui-quadrado não é simétrica, ao contrário da distribuição normal (gaussiana), conforme a Figura 6.
  • Os valores da distribuição qui-quadrado podem ser (0) ou positivos, mas nunca negativos.
  • Há uma distribuição qui-quadrado diferente para cada número de graus de liberdade.
figura6

Fig. 6: A distribuição qui-quadrado, onde todos os valores são “não-negativos”.

A presente pesquisa é fundamentada em frequências amostrais, o que, de forma típica, busca demonstrar possíveis afastamentos de valores que são teoricamente esperados. Estabelece-se, então, a relação entre valores observados e valores esperados, estes sob a ótica teórica. Para se prolatar a referida relação, usa-se a seguinte estatística de teste, que torna possível medir a discrepância entre o observado e o esperado, estes enquanto frequências, obedecendo à seguinte fórmula:

formula3

Onde (O) representa a frequência de valores observados e (E) representa a frequência de valores esperados.

A estatística de Teste qui-quadrado  representa uma restrita concordância entre os valores anteriormente denominados “observados” e “esperados” se a magnitude delesos é diminuta. Caso contrário, ou seja, quando o referido valor é de grande monta, a estatística aponta discordância entre os valores referidos. Então, diante do que usualmente se chama valor crítico, que depende do nível de significância representado pela letra (  e do número de graus de liberdade, rejeita-se ou não a hipótese nula, de que os valores esperados são iguais aos valores observados. Esse valor crítico é usualmente obtido em instrumento denominado de “Tabela de distribuição de Qui-quadrado”.

A escolha dessa estatística (Teste do qui-quadrado) se deveu à situação específica da presente pesquisa que é baseada em dados qualitativos. Na aplicação desse Teste, foi considerada a Hipótese nula (H0) onde as frequências observadas são iguais às frequências esperadas. Foi considerada ainda a Hipótese alternativa (H1), onde ao menos uma das frequências observadas é diferente da frequência esperada correspondente.

O Nível de significância é a probabilidade de se afirmar-se que ao menos uma das frequências observadas é diferente da frequência esperada correspondente. Esse nível de significância está relacionado ao Grau de confiança, que é a probabilidade de as frequências esperadas serem iguais às frequências observadas. Na aplicação do Teste (qui-quadrado) foram considerados os seguintes valores:

Nível de significância:  = 5%

Grau de confiança:     1 –  = 95%

Outro valor considerado é o número de Graus de liberdade que é n – 1, onde n é o número de categorias, no presente caso (16). São 15, então, os graus de liberdade considerados.

A tomada de decisão de se rejeitar ou não a Hipótese nula (H0) é feita de tal forma que:

formula4

Onde Vc é o Valor crítico, que nesse teste é de 24,996, que corresponde ao Nível de 0,05 de significância e 15 graus de liberdade.

As frequências esperadas utilizadas em nosso teste são as médias aritméticas das frequências relativas de cada uma das 16 categorias definidas, conforme indica a Tabela 6.

Categorias12341- 21- 31- 42 – 32 – 43 – 41- 2- 31- 2- 41- 3- 42- 3- 41- 2- 3- 4Suficientes
Grupos                
A7,1011,112,1633,952,471,232,784,631,230,311,540,620,310,313,0927,16
B7,1811,000,4831,103,350,001,910,961,910,000,480,000,000,003,3538,28
C4,591,530,5131,632,040,001,021,532,041,531,020,003,572,0414,2932,65
D6,671,820,6142,421,211,822,421,211,210,611,210,610,610,612,4234,55
E5,888,820,0025,491,960,980,980,980,980,980,000,001,960,000,9850,00
Frequências esperadas6,286,860,7532,922,210,811,821,861,480,690,850,241,290,594,8336,53

Tab. 6: Cálculo das frequências esperadas utilizadas nos testes de qui-quadrado.

As Categorias já estão definidas anteriormente. Os Grupos constantes das tabelas correspondem aos seguintes tipos de documentos médico-legais analisados:

a) Laudo de exame de corpo de delito (Lesão corporal).

b) Laudo de exame de corpo de delito (Conjunção carnal)

c) Laudo de exame de corpo de delito (Exame Necroscópico)

d) Exame clínico de verificação de embriaguez.

e) Laudo de exame de corpo de delito (estupro).

Para cada Grupo, as frequências observadas utilizadas no teste são as frequências relativas (percentuais) de cada uma das 16 categorias.

Aplicando-se a seguinte equação a cada Grupo, obtém-se a estatística X².

formula5

A Tabela 7 apresenta os resultados obtidos com a aplicação da equação citada para cada um dos Grupos.

Grupos 
A15,58
B8,32
C34,04
D11,05
E14,25

Tab. 7: Estatísticas obtidas na aplicação do teste de qui-quadrado.

As estatísticas obtidas no Teste de qui-quadrado para os Grupos: A, B, D e E são menores que o Valor crítico (Vc = 24,996), levando-nos a aceitar a Hipótese nula para esses grupos.

A estatística obtida no Teste de qui-quadrado para o Grupo C é maior que o Valor crítico (Vc = 24,996), levando-nos a rejeitar a Hipótese nula para esse grupo. O que explica esse resultado é o fato de que, nesse grupo, a quantidade de dados (laudos necroscópicos) com os quatro tipos de erros é maior comparado aos demais grupos, como mostra a Figura 7, talvez pela maior complexidade e exigência de maiores conhecimentos para a consecução deles.

figura7

Fig. 7: Comparação da categoria “1, 2, 3 e 4” nos cinco grupos.

Podemos perceber graficamente que nos Grupos A, B, D e E as frequências observadas convergem às frequências esperadas.

figura8

Fig. 8: Comparação entre as Frequências esperadas e Frequências observadas nos laudos de Lesão corporal.

figura9

Fig. 9: Comparação entre as Frequências esperadas e Frequências observadas nos laudos de Conjunção carnal.

figura10

Fig. 10: Comparação entre as Frequências esperadas e Frequências observadas nos laudos de Verificação de embriaguez.

figura11

Fig. 11: Comparação entre as Frequências esperadas e Frequências observadas nos laudos de Ato libidinoso.

Podemos perceber que, no Grupo C, as frequências observadas divergem das frequências esperadas.

figura12

Fig. 12: Comparação entre as Frequências Esperadas e Frequências Observadas nos laudos de Exames Necroscópicos.

Podemos concluir que, nos Grupos A, B, D e E, é possível usar as frequências observadas para estimar essas categorias em outras populações, por estarem ajustadas à distribuição qui-quadrado ( ), enquanto para o Grupo C não se pode fazer afirmação semelhante pelo não ajustamento da amostra na distribuição qui-quadrado ( ).

A estatística se ocupa de reunir dados para deles se obterem informações ou se conhecerem determinados aspectos dos grupos examinados. Na presente pesquisa, ao se comparar as frequências observadas e esperadas, observou-se que, nos grupos A, B, D e E, estava ajustada a distribuição qui-quadrado ( ), enquanto no grupo C não havia o referido ajustamento. Pode-se inferir que, nos grupos A, B, D e E, por serem grupos de menor complexidade, ou seja, mais simples, as contradições praticamente inexistam (sob o ponto de vista estatístico), ou seja, de tal monta que suas significâncias se ajustem à estatística proposta (qui-quadrado), o que não ocorreu no grupo C, pois, devido à maior complexidade, as contradições se tornam evidentes e, por consequência, o não ajustamento dos dados daquele grupo à estatística proposta.

4. CONCLUSÃO 

Chega-se assim ao desiderato que, embora tenham sido encontrados laudos suficientes em 27,16% dos casos analisados de lesão corporal, de 38,28% nos casos de conjunção carnal, de 32,65% nos casos de exames necroscópicos, de 34,55% nos casos de verificação de embriaguez e de 50% nos casos de verificação de estupro, que a maioria dos documentos médico-legais da amostra pesquisada apresentam evidências de serem hipossuficientes e inadequados para servirem de prova científica na forma mais adequada possível.

Pode-se, a partir dos elementos aqui contidos, de forma analítica e sintética, propor as categorizações evidenciadas, ou seja, Inadequação e Imprecisão do vocabulário técnico, Inadequação dos conceitos em Medicina Legal, Nexo causal prejudicado e Laudo insuficiente, como proposta de avaliação adequada para uma avaliação crítica e científica dos documentos médico-periciais sob a ótica das possibilidades, ou seja, possibilidade enquanto uma grandeza matemática (aqui sob a ótica de Popper (6)). Ressalte-se, ainda, que o foco deste artigo foram a visão crítica, a exigência demonstrativa da ciência e, também,  contemplar-se a complexidade do fenômeno biológico, especialmente aqueles advindos da ação dos agentes vulnerantes.

Perspectivas se podem abrir para alterações do que foi proposto, devido à singularidade do fenômeno (aqui, enquanto entendimento do indeterminado) biológico sob o aspecto da complexidade inerente à atividade médico-pericial.


Referências bibliográficas

  1. França GV. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabara; 2015.
  2. Kant I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 1994. Kant I. Lógica. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro; 2003.
  3. França GV. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabara; 2017.
  4. Lalande A. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes; 1999.
  5. Arango HG. Bioestatística. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2005.
  6. Popper KR. A lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix; 1972.